Jornal O POVO 07/07/2003
Às vésperas de seu aniversário não-oficial de 80 anos, Millôr Fernandes, o mestre do humorismo brasileiro, diz que nunca brigou com ninguém na imprensa brasileira e que a idade reduziu seu potencial a 30%.
Aos 18 anos, quando foi no cartório tirar a cópia da certidão de nascimento para finalmente fazer sua carteira de identidade, Milton Fernandes descobriu que, graças à caligrafia barroca do tabelião, seu nome fora registrado de um jeito diferente. No documento, a barra do t virara um acento circunflexo e o n final ficara parecido com um r. Como a alteração do documento custaria 300 contos de réis, Milton achou por bem manter a nova grafia. Virou Millôr Fernandes.
Como dramaturgo, Millôr escreveu alguns dos principais sucessos do teatro brasileiro nos últimos quarenta anos (Liberdade, liberdade; É; Os órfãos de Jânio; etc) e traduziu a fina flor da dramaturgia mundial: de Molière a Shakespeare, de Harold Pinter a Tennessee Williams. "Tudo o que não sei sempre ignorei sozinho. Nunca ninguém me ensinou a pensar, a escrever ou a desenhar, coisa que se percebe facilmente, examinando qualquer dos meus trabalhos", ele escreveu em Autobiografia de mim mesmo (1968), seu texto de estréia na revista Veja, onde trabalhou por 14 anos.
"Vivo para a frente e compreendo para trás", resume. Oficiais ou não, as comemorações pelos 80 anos do decano do nosso humorismo já começaram.
O POVO -Antes de mais nada, o senhor passou a preferir dar entrevistas por escrito. Por quê?
Millôr Fernandes - Óbvio. Escrevendo sai o que escrevo, falando sai o que vocês bem (ou mal) entendem.
OP -Em se tratando de entrevistas, o senhor deve ter respondido (ou não) a muita pergunta besta. Ou pelo menos, digamos, curiosa. Alguma história nesse sentido?
OP - Este ano, o senhor completa oitenta anos (de fato, porque de direito é só no ano que vem). A passagem do tempo lhe incomoda? Como o senhor lida com isso?
Millôr - O fato real é que completo 79. A confusão é uma longa história. Aceite a que achar melhor. A passagem do tempo me incomoda tanto quanto incomoda a quase todo mundo. Meu potencial foi diminuído a 30%, em todos os sentidos. Mas, pra só falar em libido, que é a que a maior parte das pessoas se refere quando fala em idade; você em algum momento chegou a usar 30% do seu potencial?
OP - De que maneira a infância passada no Méier foi decisiva para a sua formação? Que lembranças o senhor traz daquele período?
Millôr -Decisiva. O mundo é o Méier. A vida é o Méier. Muitas lembranças. Mas nem 30% (olha o percentual, de novo) de minha vida, lembranças, amores, estertores, estão ligados a isso.
OP - Apesar de ter nascido em 1923, o pai do senhor só lhe registrou no ano seguinte. Por que essa demora?
Millôr - Já falei. E o registro é 24. Impossível saber, se até o nome não era meu nome.
Millôr - Não trapalhada. O homem era um tremendo calígrafo e o nome ficou tão bem feito que virou outro. Adotá-lo foi apenas natural. Você hesitaria entre Milton e Millôr?
OP - A tua descoberta do desenho se deu com a chegada ao Brasil das histórias em quadrinhos, na década de 30. Como foi isso? Que histórias eram essas? Que personagens te marcaram?
Millôr- Pra ser exato - 1934. Flash Gordon. Alex Raymond. Depois Milton Caniff. Depois Harold Foster. É só consultar a história dos quadrinhos com muito mais gênios do que muitas galerias de "arte".
OP - O início do profissionalismo se deu com a publicação, aos 14 anos, de um trabalho em O Jornal. Depois vieram A Cigarra e O Cruzeiro. Quais foram suas primeiras lições de jornalismo? Como foram esses primeiros tempos de profissão?
Millôr - A minha primeira lição de jornalismo: ganhar a vida. Tome ganhar a vida no mais amplo sentido da palavra. Mas, na verdade, a gente só pode dizer que ganhou a vida - os outros é que dizem - quando a perdemos definitivamente.
Millôr - Kant não, só brincadeira. Shaw, Proust, Guimarães Rosa, Augusto dos Anjos, não propriamente influências. Li tanto que as influências se diluem.
OP - Em 1948, o senhor trabalhou como correspondente de O Cruzeiro em Hollywood, onde conviveu com Vinícius de Moraes e Carmen Miranda. Que lembranças o senhor traz desse período? Alguma história pitoresca envolvendo o Vinícius?
OP - O senhor ostenta o título de vice-campeão mundial de pesca de atum sem nunca ter visto um atum fora da lata. Como foi esse episódio?
Millôr - Uma infindável história, que resumo. Em Newfoundland (Canadá), no maior pesqueiro de atum do mundo, com 32 país disputando, três dias de pesca, de 4 da madrugada a 4 da noite, só a Argentina pescou um peixinho de oitenta libras, quarenta quilos. Todos os outros países foram segundo colocados e ganharam uma tacinha de latão. Mas de VICE.
Millôr - Como em tudo de que participei na vida, isso aconteceu. Não houve nada programado. Não houve nenhum gênio inventor da lâmpada. Quando percebemos estávamos jogando frescobol. E Deus viu que isso era bom.
Millôr - Nunca briguei com ninguém. Você acha que, se trabalho 25 anos numa revista, como superstar, e, quando viajo, a revista, não sabendo se livrar de um problema normal, escreve um puta editorial contra mim, estou brigando, então, conserve o seu emprego.
OP - A retomada do Pasquim pelo Ziraldo lhe agradou?
Millôr - Não desagradou. A edição do Pasquim em 2001 é uma traição intelectual de um irrecuperável estupidez. Porque é uma traição intelectual. E porque a estupidez é visível. O fato de contar com alguns colaboradores de qualidade (poucos) não transforma aquilo em nada de valor como imprensa.
OP - Qual o legado que o Pasquim original deixou para a imprensa brasileira?
Millôr - É difícil medir. Mas não tem paralelo.
OP - Vamos falar do novo livro. A fábula, assim como o Hai-Kai, é um gênero que sempre esteve presente no teu trabalho. Como nasce o seu interesse por esse gênero?
OP - Qual o critério que o senhor usou na hora de reunir as fábulas desse novo livro?
OP - Qual a moral desse livro?
Millôr - Uma a uma. Nenhuma que, espero, seja conceito comum. Todas, espero, que venham a sê-lo.
OP - Quando se fala em fábulas, os primeiros nomes que vêm à tona (depois de Millôr Fernandes, é claro) são os de Esopo e La Fontaine. O senhor vê alguma semelhança entre o seu trabalho e o desses escritores?
Millôr - Já disse alhures (!): são tias velhas.
Millôr - Que alguém me considere exceção é problema dele. Mas eu não falei isso. Falei parecido o que pode ser completamente diferente. A idéia deve ser checada, desconfiada, etcetera. Só o Lula e outros redentores pensam que vão modificar tudo, que está tudo errado. Tem muita coisa certa, eu, por exemplo, quando digo isto.
OP - Que avaliação o senhor faz desses seis primeiros meses do governo Lula?
OP - O que se perdeu entre a esperança que venceu o medo no ano passado e o medo que hoje parece estar vencendo a esperança?
Millôr - O medo não era meu. Era da Regina Duarte, refletindo outros. A esperança continua. Eu já disse: o Brasil é um país condenado à esperança.
Millôr - O pessoal se satisfaz com muito pouco.
OP - Em A Bíblia do Caos, o senhor só reclama de não ser incompreendido o suficiente. Aos 80 anos, essa compreensão de sua obra aumentou ou diminuiu? E o senhor? Compreende a própria obra?
Millôr - Onde é que acaba a sinceridade profunda e começa o trocadilho - até mesmo inteligente?
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