Carlos Drummond de Andrade: Quando o poeta brinca de viver

Para quem conseguia chegar perto, ele afirmava que não era bicho-do-mato, urso, ariranha. Um dia, porém, o gerente da livraria da Rua Vinícius de Morais, então Rua Montenegro, Rio de Janeiro, perguntou-lhe: "O sr. não é Drummond?" Ele respondeu: "Não, sou parecido".
Detalhe da página do Jornal O POVO, publicada em 29/02/2000


Aos 83 anos, lançando dois livros, "O Observador no Escritório" e "A História de Dois Amores", dedicado ao público infantil, Carlos drummond de Andrade é um homem bem-humorado, sem "nenhum sentido de propriedade" e que não faz planos para o futuro. "Quero preparar meu jazigo no São João Batista".
Quarenta livros publicados, escreve desde criança, "começei com aquele negócio que as professoras chamam de redação, quando estava na escola pública. Me disseram que tinha jeito e fiquei estimulado", mas acredita que sua verdadeira profissão é o jornalismo. poeta maior é título que odeia e acha que sua literatura "não tem visão universal, maior. essa sim transforma o autor num Cervantes ou dante. eu escrevo sobre mim mesmo e isto não traz grandeza alguma".

- Poeta; sua primeira fase foi centrada em si mesmo. Depois sua visão de mundo foi se universalizando, a partir de "Rosa do povo". Como aconteceu essa modificação?

- A primeira fase foi egoísta, normal em todo mundo. Quando começamos a viver, achamos que o mundo está concentrado em nós, que somos o ser mais importante do Universo. mais tarde, vemos que não significamos apenas uma partícula infinitesimal de tudo que acontece. para isso é necessário viver, aprender, chocar-se com mas coisas exteriores do mundo. Assim, você começa a sentir a relatividade de sua importância. o homem é apenas um dos inúmeros animais que provocam a terra, apenas dotado de mais sensibilidade e condição de compreensão, mas nossa importância é a mesma de um cachorro, pombo ou qualquer outro bicho. Todos estamos solidários no ofício de viver e é por isso que acredito que a morte de um animal deveria afetar da mesma forma que o desaparecimento de um ser humano.

- Como o senhor chegou a essa concepção universalista?

- Emocional. as pessoas racionais existem em pequeno número e são muito antipáticas. Quem vive guiado pela razão e inteligência não tem humanidade. veja, no momento estão celebrando a morte de um grande poeta nacional, o português Fernando pessoa e todos estão babando. Mas o Luís de Camões, que escreveu poemas que não perderam a atualidade? Colocam o Fernando discutindo aquele negócio de heteromismo, fragmentando sua personalidade. Camões não, ele é homem de nosso tempo, sofreu, foi pobre, banido, naufragou, viveu a vida. enquanto isso, Pessoa vivia num pequeno escritório, era guarda-livros, correspondente musical, essas coisas. para mim, a razão não prima sobre o sentimento, muito ao contrário. Por isso considero Camões o grande amoroso da língua portuguesa, cheio de sentimentos de amor - correspondidos ou não. E isso está registrado em seus admiráveis sonetos.

- Então o senhor não gosta de Pessoa?

- Tenho a maior admiração por ele, mas é um tipo de poeta que não me provoca reação profunda. Diante dele, estou raciocinando, vendo a sutileza de sua inteligência e não a profundidade de coração.

- Poeta, o amor move o mundo?

- Sem dúvida alguma. Ele é cheio de nuances, e é comum amarmos a quem não nos quer enquanto essa pessoa deseja outra que, por sua vez ama uma terceira. é uma espécie de ciranda, cantiga de roda. Amar é inexplicável e Proust, em "À sombra das Raparigas em Flor" disse, a propósito da mulher que tinha amado: "e dizer-se que a grande paixão de minha vida foi por uma mulher que nem sequer era meu tipo. esse desencontro é muito comum".

- E casamento?

- O primeiro e o segundo não dão certo. Só o terceiro. Veja o Vinícius de Morais que casava muitas vezes porque, a cada união, se juntava a ilusão de certa eternidade. Então, quando ele apresentava a nova mulher, dizia: "vou apresentar minha viúva", pois tinha certeza que ficaria com ela até morrer. Dois anos depois Vinícius estava com outra viúva. Amar é a coisa mais importante da vida e quantos magnatas, cheios de dinheiro, sofrem por amor? De repente, uma mulher entra em suas vidas e estraçalham com tudo. Mesmo que na prática não se saiba bem como ao licar esse sentimento , a idéia do amor é a mais pura e elevada possível. A eternidade do amor é que é outro problema, como dizia Vinícius: "que seja infinito enquanto dure". Não, sou um poeta limitado e acho que o assunto de minha obra sou eu e isso não é bom, pois um grande poeta - como é o caso de Dante - não colocou seu nome na obra, não se considerou o bastante para colocar o pronome eu. O que descreve não é sua vida particular e "Divina Comédia" é, na realidade, um espetáculo cósmico. cervantes também não colocou sua vida no Dom Quixote e os grandes escritores têm os olhos voltados para o mundo. No meu caso não pertenço a uma tradição lírica portuguesa e brasileira limitada.

- Mas as pessoas se emocionam com sua obra. Então ela não seria tão individualista?

- É verdade que, falando destes probleminhas individuais, todo elogio que posso receber é de alguém dizendo que entrava numa fossa muito grande, leu minha poesia e melhorou, porque sentiu que eu tinha expressado uma situação existencial de dor, angústia e carência pela qual estava passando naquele momento, na verdade em que canta seu próprio umbigo. Isso é pouco. Ver através de minha ótica e por ela enxergar a dor que sinto, o sofrimento tão característico do lírico. Se conseguisse transceder o que penso, passando para uma visão geral do mundo, aí sim.

- O que é poesia?

- A verdadeira poesia me parece impessoal e está acima das dores individuais de quem as escreve.

- O senhor é chamado de "poeta maior" e tem horror a esse título. Por quê? 

- não sou poeta maior coisa nenhuma e quem me chama assim deve ser pelo fato de eu ainda estar vivo, escrevendo, enquanto, outros já morreram. Deve pensar: puxa, este cara não pára. Não existe poeta maior, mas poeta, e, no Brasil, tivemos Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, raimundo Correia e Augusto dos Anjos, que é extraordinário. Há algo de universal, geral em sua obra, que é superior a dor de barriga. Uma visão de mundo, sentimento de Deus, beleza da vida e da arte. e isto transcede as misérias de nosso corpo. No meu caso, isto não aparece. Quantas vezes usei o pronome eu?

- Então quem é, verdadeiramente, poeta?

- Ele não tem identidade, é voz do mundo e não aparece em qualquer momento, mas de longe em longe.

- E sua prosa?

- Ela é profissional, fui jornalista a vida inteira. uma vez ou outra tentei fazer uns contos, no Jornal do Brasil, mas não me considero contista. Eu era cronista, de vez em quando achava sem graça ficar dando opinião sobre as coisas e então colocava um verso. noutras, um pensamento e noutras ainda, uma historinha para me divertir e dar ao público uma impressão de variedade. Como divertiu alguns leitores, achei que podia colocar um livro. "Contos Plausíveis" não tem base na realidade, quase todas as histórias são surrealistas. A gente abre um jornal e vê terremotos, seqüestros, tragédias. Torna-se, então, necessário, procurar a história de um gatinho que apareceu criado por uma cadela, para mostrar que o mundo não é só horror e uma plantinha pode se transformar em florzinha amarela. Essa é a função da crônica. Para discutir política ou economia há cronistas especializados, com páginas inteiras. Vamos, então, ficar na brincadeira para que, ao final da manhã, você consiga despertar um sorriso de satisfação em alguém. Isto é o máximo, e fico satisfeito de saber que alguém disse: "você viu o que o Drummond falou?" 

- Qual é a sua visão do mundo?

- Metade lúgubre e metade risonha. 'E terrível dizer, mas à custa de guerras, surgiu a penicilina, o antibiótico. Então, ficamos obrigados a reconhecer que o mundo melhorou sob alguns aspectos e não vai acabar. A ciência ainda está no início de certos conhecimentos, mas vai chegar o dia em que haverá até agência de turismo para nos levar à lua.

- E "Observador no Escritório"?

- Tem partes de um diário que parei de escrever porque não considerei importante. Ia rasgar, mas, na hora, vi coisas que poderiam interessar à vida literária e política, pois eram épocas em que estávamos cultivando ilusões como agora: Constituinte, Democracia, Brasil melhor. As ilusões fracassaram, exatamente como está acontecendo agora.




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