A comissão das borboletas


























A Fundação Waldemar Alcântara lança mais um volume que dá sequência a seu "Projeto Obras Raras". Esse novo livro está sob a organização e apresentação de Antônio Luiz Macêdo e Silva, Francisco Régis Lopes Ramos e Kênia Sousa Rios. Trata-se de um diário de viagem, compreendendo os registros e impressões do Frei Alemão acerca de usos, costumes, clima, topografia do Ceará no século XIX.

Apartir da segunda metade do século XIX, a província do Ceará, por conta das explorações que contemplavam a Mineralogia e a Geologia, a Astronomia e a Geografia, a Etnografia, a Botânica - tudo acompanhado por registros pictóricos -, passou a integrar o mapa do País, no sentido de a Região Sudeste, onde se encontrava o poder central, dá-se conta, de modo mais incisivo, da existência de nossa terra, até então entregue apenas a uma visão exótica.

A passagem dessa Comissão Científica pelos espaços mais diversos do território cearense foi registrada pelo seu presidente e chefe da seção botânica, Freire Alemão, compreendendo um período que vai de 30 de maço de 1859 a 24 de julho de 1861, representando valioso documento por que se possa conhecer nossa História, bem como a representação que os de fora faziam de nossa gente.

Personalidades ilustres, hoje imortalizadas em diversas áreas do conhecimento e da produção literária, integraram essa comitiva: Guilherme Schüch Capanema - grande conhecedor das ciências físico-naturais; Manuel Ferreira Lagos - encarregado dos trabalhos da seção de Zoologia; a seção Etnográfica estava sob o comando do então já famoso poeta Gonçalves Dias, laureado por conta de sua produção de natureza lírica ou nacionalista.

O diário de Freire Alemão é, sobremaneira, um retrato vivo da então província do Ceará: veem-se juízos de valor ou simplesmente documentação acerca das singularidades do clima, do relevo, da culinária, dos elementos configuradores da paisagem ou da arquitetura, sem o esquecimento de notas orientadores dos usos e dos costumes.

Do ponto de vista da História do Brasil, de nossa organização enquanto povo e nação, a Expedição Científica também estava atrelada à ideia de unificação de nosso território. Como se sabe, houve, em especial nas terras do Norte e do Nordeste, logo após a Independência, uma série de movimentos de caráter separatista, como, por exemplo, em terras do Ceará, a Confederação do Equador.

Nesse sentido, talvez houvesse, nas teias subjetivas do projeto, o desejo de apresentar um Brasil esquecido aos outros brasileiros, mais próximos do progresso e do desenvolvimento, por isso mesmo talvez integrante de um outro Estado: "É notável como o povo do Ceará entende a sua nacionalidade: para eles o Brasil é o Ceará, os mais provincianos são estrangeiros. Ontem o nosso irmão do Franklin, conversando com o Manoel, disse: ´Vieram os senhores a este nosso Brasil´. O sujeito que nos hospedou à margem do Pirangi, conversando conosco nos confundiu com a gente da Europa". (p.61)

Uma outra temática se apresenta como grande fonte de preocupações é, sem dúvida, a da seca. Lancetado por espadas de fogo, o Ceará, com muita frequência, enfrentava grandes mortalidades. E mesmo que a seca ganhasse, por conta dos depoimentos de testemunhas, destaque nacional, os esforços do poder central no que diz respeito ao combate a essa fatalidade eram, até então, insignificantes. Porém, a partir da vinda daquela Expedição Científica, "O tema da seca passa a ser o principal elo entre a província do Ceará e o governo central. Com a supremacia dos estudos científicos de caráter pragmático, o Ceará passa a ser entendido como um problema a ser resolvido pelo saber da mineralogia, geologia, botânica, zoologia e astronomia". Sob o ângulo da ideologia, tais conhecimentos minariam os perigos dos estudos políticos e filosóficos por sobre o governo.

Ao longo do diário, há todo o tipo de registro; alguns de natureza cômica, quase disseminando o ridículo: "Chegamos a Messejana às seis horas e meia, indo conosco o Dr. Assis. Logo que chegamos nos apresentamos ao suplente de subdelegado, que estava em camisa e ceroula, na frente de sua taverna". (p.37) Em outros momentos, evolam-se aspectos da topografia: "O vale do Jaguaribe e provavelmente o do Mossoró são dignos de estudo: as planícies vulcânicas que neles se manifestam, as grandes ossadas que aí se têm descoberto e seguramente as muitíssimas que ainda estão ocultas, o tom variado que dá certos terrenos etc, tudo espécie explorada, seguidas semelhantes". Vem depois a aridez do Apodi. Esse livro, como um todo, é de uma riqueza sem igual, leitura que alimenta.

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